Arqueologia e Sociedade – A opinião de Daniel Carvalho

Arqueologia e Sociedade

OPINIÃO

21 de Janeiro de 2019


DANIEL CARVALHO

“…há que consciencializar quer os profissionais de hoje como as gerações de amanhã da importância de ligar a actividade arqueológica à Sociedade…”

 

Arqueologia e Sociedade

2018 encerra consigo o ano europeu do Património Cultural, o que originou inúmeros debates a nível internacional, não simplesmente sobre o Passado, mas dos modos em que este se relaciona, molda e influencia o Presente. Fala-se agora de identidade, de memória, de ambiente, de minorias, de neocolonialismos, de pertença, de política, de inclusão, ad infinitum, quando se procura definir a Arqueologia no novo milénio. A esta incontável desmultiplicação associa-se um retorno ao “ponto zero”, à essência da disciplina, que se espelha nas principais direcções teóricas tomadas e em processo de consolidação que encontramos na bibliografia internacional: a opção de uma flat ontology, os novos materialismos, a simetria entre artefacto/ser humano, o ecleticismo da teoria como bricolage, adaptada da filosofia de Ludwig Wittgenstein, entre outras. O dinamismo não se esgota, encontrando-se igualmente tentativas de reformulação dos limites cronológicos da disciplina: pois quem poderá, com certeza inabalável, afirmar onde começa o Passado? Emergirá uma Arqueologia do Passado recente, de um ontem, ou mesmo uma Arqueologia do Presente, alicerçada no facto do pretérito possuir não apenas uma dimensão temporal, mas espacial, assim como um olhar sobre o “Outro”? Os estudos de William Rathje, Gavin Lucas e Cornelius Holtorf, para citar apenas alguns autores, parecem denotar isso mesmo, que a aplicação metodológica da disciplina permite percepcionar realidades sobre a cultura material contemporânea que vão muito além do óbvio e do senso comum. Deste modo, é notório que a Arqueologia não se encontra “poeirenta”, desprovida de vida e que não procura produzir um saber esotérico. Pelo contrário, procura cada vez mais incorporar-se com outras ciências, com outros discursos, com o Presente.

Mas como o faz? E porquê fazê-lo? A resposta à segunda questão é já antiga: a Arqueologia tem uma necessidade de se legitimar que perdura desde a sua génese. Na busca de direito próprio, não quis ser somente auxiliar da História ou um sub-ramo da Antropologia. Procurou distanciar-se, não no sentido de se fechar em si mesma, pois a sua constituição é extremamente múltipla, mas de construir uma identidade, de um estatuto seu. Hoje, este processo adquire outros contornos, tal como a justificação de financiamento para projectos de investigação; da inserção profissional no mercado de trabalho; na contínua luta de alcançar o prestígio intelectual de outras áreas. Para tal, hoje fá-lo de um modo que poderá parecer bastante intuitivo: liga-se à Sociedade. No entanto, a complexidade deste caminho é inequívoca: à desmultiplicação enunciada face à disciplina, soma-se agora a do arqueólogo. Para esta aproximação social funcionar, a este último cabe ser comunicador, gestor, orador, diplomata, num intenso combate a favor de agradar todas as partes. A Arqueologia Pública, também uma sub-área recente, explora essas mesmas relações, invocando a importância da Arqueologia para a Sociedade, mas da Sociedade para a Arqueologia. Internacionalmente, comunidades escavam, com a devida supervisão, os sítios arqueológicos das suas localidades; colecionadores cooperam com os organismos reguladores no sentido de identificar artefactos e de fornecimento a museus; opiniões dos visitantes face às narrativas construídas pelos arqueólogos sobre uma determinada realidade são solicitadas. De modo indirecto ausculta-se igualmente esta importância. Quem não conhecerá os fenómenos cinéfilos de Indiana Jones e Tomb Raider? A nível televisivo, literário, lúdico. Shows, livros, banda desenhada, videojogos: a Arqueologia subsiste, por vezes sob formas pouco científicas ou manifestamente erradas, mas a sua unidade básica permeia todas estas formas de comunicação.

E Portugal? A importância social parece, ainda que lentamente face a outros países, começar a entrar na sua prática. Iniciativas de procura de comunicação, quer seja em âmbito de escavações arqueológicas, quer em termos de palestras, colóquios e conferências aumentam em número. Todavia são genericamente tentativas difíceis de empreender, não existindo um esforço colectivo da comunidade arqueológica em avançar com propostas sistemáticas e de longa duração. Não existe, por exemplo, uma Arqueologia Pública, quer a nível de currículo nas universidades, quer em termos práticos, de uma sub-área legitimada, em Portugal. Ainda que sejam louváveis todas as acções individuais, por vezes com um acréscimo das responsabilidades do arqueólogo, há que consciencializar quer os profissionais de hoje como as gerações de amanhã da importância de ligar a actividade arqueológica à Sociedade, de modo a consolidar o seu estatuto científico e relevo aos valores contemporâneos. Já a nível indirecto, há que fomentar uma cultura de comunicação adaptada, especificamente focada na criação de mensagens. A escrita de textos que ultrapassem os meios científicos e a capacidade de oferecer um discurso que permita o despertar do interesse de vários públicos afiguram-se como fundamentais para a construção de pontes entre a academia, o meio profissional e a Sociedade. Esta atitude não deve originar quaisquer receios, pois a Arqueologia não perderá a sua objetividade científica por diversificar a sua mensagem, pelo contrário, torná-la-á mais forte, contextualizando-a e difundindo-a. O próprio fascínio originado pela cultura popular permite-lhe uma abordagem facilitada, dado muitas vezes negligenciado ou encarado pejorativamente. Finalmente, o arqueólogo português deve fazer valer a abertura que a sua área de estudo proporciona. Que outra ciência se poderá tão facilmente vangloriar de ser um cruzamento de tantas perspectivas, tantos outros saberes, tantos métodos e tantos empréstimos teóricos? Há que dar o verdadeiro uso a essa capacidade de poder imiscuir-se nos grandes temas contemporâneos e não cair numa visão redutora do potencial da Arqueologia. Com essa entrada, a valorização e importância do arqueólogo para a Sociedade poderá florescer, com amplas vantagens para a própria “saúde” epistemológica da disciplina.

O caminho a percorrer é, como geralmente o é, longo. Com a despedida de 2018, poderemos acalentar a esperança de que 2019 possa beber aos debates do seu antecessor, juntando a reflexão à acção. A Arqueologia possui o seu objecto de estudo no vestígio material do passado humano, mas encontra o seu sentido na produção desse conhecimento para a sociedade contemporânea. E a esperança reside em que esse caminho seja, como não pode deixar de ser, trilhado a dois: com a Arqueologia de braço dado à Sociedade.


Daniel Carvalho – Mestrando em Arqueologia na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Os meus interesses vão ao encontro da História da Arqueologia, Teoria da Arqueologia e Arqueologia Pública, assim como de abordagens multidisciplinares ao estudo da cultura material.