
OPINIÃO
10 de Julho de 2019

LUÍS RAPOSO
Pergunto-me o que virá a seguir. A privatização mercantilista dos museus nacionais que possam gerar receita e o abandono de todos os demais, entregues à sua apagada e vil tristeza?
Ou tudo isto não passa de inquietações sem sentido, próprias da idade e da aproximação da reforma?
No Museu onde trabalho (faz agora precisamente quatro décadas), havia, quando entrei, guardas de dia e de noite, estes com cães e licença de porte de arma, havia auxiliares de limpeza (as primeiras cuidadoras das colecções, como enfaticamente dizia Adília Alarcão, com quem, mesmo sem o saber, mais aprendi a amar os museus pelas pequenas coisas do dia-a-dia), havia conservadores para várias colecções, havia arqueólogos com actividade de campo ao serviço do museu (eu próprio, era um deles), havia telefonistas, havia técnicos de laboratório (inclusive uma engenheira química, isto para além do sector de arqueociências, com diferentes especialidades), havia secretaria com chefia própria, havia bibliotecária, havia almoxarife, havia marceneiro e havia carpinteiro, havia, havia… éramos quase uma centena e apenas recorríamos a aquisições de serviços externas quando realmente justificadas, em situações técnicas (caso do transporte de peças para o exterior) ou para alargar o leque da criatividade (caso dos projectos de exposições).
Havia também desenhadores (no plural), conforme a longa, secular, tradição de uma Casa por onde passaram Guilherme Gameiro, Francisco Valença, João Saavedra Machado, Dario de Sousa… Até o grande Stuart Carvalhais aí colaborou, ocasionalmente. Em algumas décadas do século XX, especialmente nos anos iniciais da Ditadura e do Estado Novo, era no “Museu de Belém” que se reuniam alguns destes mestres e aí conversavam, trocavam experiências, talvez também ideias. Diversas técnicas de representação gráfica em arqueologia foram testadas, desenvolvidas, no que constituiu uma escola prática. E nunca é demais lembrar que, em Arqueologia, seja de campo seja de gabinete, incluindo registo de peças em museu, o desenho é muito mais importante do que a fotografia: esta, para usar a expressão de Mortimer Wheeler, “é mentirosa”, porque dá a errada (e ingénua) sensação de autenticidade; aquele é verdadeiro, porque expõe sem filtros a interpretação do autor, desenhador e arqueólogo.
Digo tudo isto porque se reformou por estes dias a Helena Figueiredo, aquela que poderá talvez ter sido a última desenhadora do Museu Nacional de Arqueologia, já que não se vê no horizonte nenhuma possibilidade de inverter a caminhada para o abismo em que os Museus Nacionais se encontram em matéria de pessoal. Abismo que não é só pela falta do mais aparente (vigilantes-recepcionistas), mas pela efectiva falta de pensamento estratégico quanto ao que é ser museu e mormente museu nacional. Éramos próximo de uma centena há quatro décadas, a grande maioria com contratos de trabalho estáveis; cobríamos quase todos os sectores de especialidade necessários à realização da missão do museu e confiávamos na perenidade intergeracional da instituição. Hoje seremos menos de três dezenas, recorremos a torto e direito a externalidades, à exploração dos mais jovens (bolseiros, estagiários…), à precariedade em geral e até, cada vez mais, ao “voluntariado”…
Pergunto-me o que virá a seguir. A privatização mercantilista dos museus nacionais que possam gerar receita e o abandono de todos os demais, entregues à sua apagada e vil tristeza? Ou tudo isto não passa de inquietações sem sentido, próprias da idade e da aproximação da reforma?

Desenho de Helena Figueiredo do vaso neolítico do Monte da Vinha, oferecido ao MNA pelo escritor Mário de Carvalho, membro do Grupo de Amigos (e amigo pessoal, já agora), que esteve exposto após a doação em 2005, na vitrina do GAMNA situada no átrio do Museu. Repare-se que a análise inteligente da desenhadora foi ao ponto de ter detectado, e representado, a forma dos instrumentos ou estiletes usados na execução dos motivos impressos.
Luís Raposo
Arqueólogo. Especialista em Pré-História Antiga (Paleolítico).
Museu Nacional de Arqueologia: Arqueólogo desde 1980. Director entre 1996 e 2012. Responsável do Sector de Investigação desde 2012.
Comissão Nacional Portuguesa do ICOM: Presidente da Direcção desde 2009 até Março de 2014.
Associação dos Arqueólogos Portugueses: Presidente do Conselho Fiscal desde Março de 2012. Vice-Presidente da direcção desde 2015.
ICOM Europa: Membro da direcção desde 2011. Vice-Presidente desde 2013. Presidente desde 2016
Universidade de Lisboa (Faculdade de Letras): Professor convidado, entre 2005 e 2014; Instituto Politécnico de Tomar: Professor convidado, entre 1999 e 2005; Universidade Lusíada, professor convidado entre 1988 e 2003.
*Texto originalmente publicado na página pessoal do autor, no dia 10 de Julho de 2019.
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