
OPINIÃO
10 de Junho de 2020


” Parece-nos, pois, que mais uma vez prevaleceu o interesse privado frente ao bem colectivo, com base nos chamados “direitos adquiridos”, figura recorrente para fazer valer os pontos de vista particulares.”
A ermida quinhentista de Nossa Senhora do Socorro, situada à entrada da aldeia de Carvalhal (Bombarral), é um desses casos surpreendentes de pequenas jóias patrimoniais que pontuam o nosso país fora dos grandes centros de produção artística: quem observa o singelo mas belo exterior de linguagem chã não adivinha a riqueza decorativa do interior, albergando um programa barroco de “arte total” resultante da combinação de painéis azulejares atribuídos a Nicolau de Freitas – o maior pintor da “Grande Produção Joanina” –, com pinturas de esgrafitado e de brutesco na cobertura, destacando-se ainda a imagem gótica da Virgem com o Menino no retábulo seiscentista. Pelo seu valor histórico-artístico, a ermida foi classificada como Imóvel de Interesse Público (Decreto nº 45/93, de 30 de Novembro), encontrando-se por isso sujeita às regras de intervenção arquitectónica e urbanística na Zona Geral de Protecção definida em seu redor.
Recentemente foi aprovado pela Câmara Municipal do Bombarral (CMB) o licenciamento de uma moradia de 2 pisos a construir no terreno imediatamente adjacente à ermida, ao abrigo de um loteamento realizado em 1979. Quatro décadas mais tarde, e depois de recusar algumas propostas anteriores, em 2019 a CMB emitiu parecer favorável condicionado à aprovação pela Direcção Geral do Património Cultural (DGPC), a qual emitiu 2 pareceres de não aprovação invocando razões como a ausência de enquadramento urbanístico e integração paisagística, excessiva volumetria e características dissonantes da proposta, e a possibilidade de afectar eventuais vestígios arqueológicos no subsolo. Uma terceira proposta acabou aprovada pela DGPC, apesar das alterações efectuadas terem sido mínimas em relação ao projecto inicial e sem que estivessem avalizadas as condicionantes apontadas nos dois pareceres negativos anteriores. Em Março de 2020 a CMB emitiu o respectivo licenciamento e a obra foi iniciada pouco depois. Actualmente encontra-se embargada, depois do proprietário ter cortado árvores, movimentado terras e construído um paredão de 7 metros em plena área de Reserva Ecológica Nacional (REN).
Tão grave como este delito ambiental terá sido o facto das fundações do novo edifício terem sido feitas sem as sondagens arqueológicas requeridas como condição de aprovação da proposta pela DGPC, evidenciando um claro desrespeito pelas regras patrimoniais. Não se coloca em causa a legítima vontade do proprietário construir uma moradia (para usufruto pessoal ou como bem imobiliário transaccionável), embora o bom-senso e uma maior sensibilidade patrimonial aconselhassem uma actuação diferente: a construção de um edifício de grande volumetria a escassos 3 metros da ermida classificada perturba significativamente a sua imagem, sobrepondo-se a esta ao ocultá-la parcialmente, interferindo na sua leitura como templo rural isolado. Receia-se ainda os possíveis danos na estabilidade da ermida e seu programa decorativo provocados pela maquinaria pesada e pela movimentação de terras.
A DGPC tem a função de assegurar a salvaguarda do património cultural português, sendo chamada a pronunciar-se sobre o impacto de novas construções em áreas sensíveis de edifícios classificados, muitas vezes ameaçados ou fragilizados pelos proveitos imobiliários. Em muitos sentidos, para obstar à falta de técnicos municipais especializados na área do património e em abono da sua defesa face a potenciais vicissitudes locais, a acção da DGPC deveria ser o garante da defesa e respeito pelo interesse colectivo nacional em questões patrimoniais. Por outro lado, mesmo com o seu parecer favorável, as competências de licenciamento deste tipo de obras são das câmaras municipais, que podem a isso negar-se desde que suportadas em razões válidas, competindo aos seus técnicos providenciar pelo respeito dos regulamentos existentes, mas também ter a sensibilidade para questões difíceis de regulamentar, como os aspectos estéticos, paisagísticos, etc.
Parece-nos, pois, que mais uma vez prevaleceu o interesse privado frente ao bem colectivo, com base nos chamados “direitos adquiridos”, figura recorrente para fazer valer os pontos de vista particulares. O valor patrimonial deste edifício classificado terá sido negligenciado em favor de conveniências privadas, como tantas vezes sucede por este país fora, com as entidades a sacudirem o ónus das responsabilidades entre si. Todos os intervenientes estiveram mal nesta situação da ermida do Carvalhal, com a DGPC à cabeça pela sua falta de coerência nas exigências patrimoniais, mas também a CMB pela sua inércia – deveria ter acautelado atempadamente esta situação antiga, que seria previsível; esperemos que o faça doravante, aproveitando a actual revisão do PDM do Bombarral. Mas este é apenas um entre muitos outros casos de ameaças ao património cultural que, infelizmente, todos os dias sucedem no nosso país…
Joaquim Rodrigues dos Santos – Arquitecto, investigador e docente convidado no ARTIS – Instituto de História da Arte / FLUL. Doutor em Arquitectura (salvaguarda patrimonial) pela Universidad de Alcalá; Mestre em Arquitectura, Território e Memória pela Universidade de Coimbra; Especialista em Conservação e Restauração de Monumentos e Sítios Históricos pela Universidade Federal da Bahia; Licenciado em Arquitectura pela Universidade de Coimbra. Desenvolve investigação sobre história e salvaguarda do património edificado em Portugal e antigos territórios ultramarinos, tendo várias publicações e apresentações em eventos científicos.
Dóris Santos –Museóloga, investigadora no Instituto de História da Arte da NOVA – FCSH. Doutoranda em História da Arte (Especialização em Museologia e Património Artístico) pela NOVA – FCSH; Mestre em Museologia e Património pela NOVA – FSCH; Licenciada em História (variante História da Arte) pela Universidade de Coimbra. Autora de publicações e artigos nas áreas da história da arte, museologia e história local, destacando-se entre outros: Arte por Terras do Bombarral (coord., 2017); Património Artístico Religioso do Concelho do Cadaval (2006); Igreja do Santíssimo Salvador do Mundo: História, Projecto e Construção (2003); A Casa de Abel Pereira da Fonseca no Bombarral (2000). –