A Via do Marão – Crónica de um caminho mal conhecido e de um património mal tratado.

OPINIÃO

11 de Agosto de 2020



“Não se compreende a falta de um estudo de impacto ambiental, ou até de um Plano Director Municipal fidedigno para a identificação do potencial patrimonial existente no corredor de obra e garantir a preservação deste, e de outros patrimónios e áreas arqueológicas existentes no concelho”

Apesar da inúmera bibliografia histórica e arqueológica do concelho de Vila Real, a Via do Marão é um caminho mal conhecido pelos vila-realenses, no entanto estimado pelos habitantes da aldeia de Campeã, pertencente ao concelho de Vila Real.

Trata-se, eventualmente, de um caminho secundário romano que durante séculos foi o acesso que ligava a terra de Panóias ao litoral, e que integravam a rede viária do Territorium Metallorum de Tresminas (Vila Pouca de Aguiar). Apesar de difícil acesso, terá desempenhado uma função estratégica ao longo dos primeiros séculos da reconquista cristã, em especial na conquista dos territórios até à linha do rio Douro, tendo sido a Campeã um lugar de passagem e paragem obrigatória na travessia do Marão. Na Idade Média é criada a Albergaria do Marão em 1132 pelo arcebispo D. Pelágio e o Cabido de Braga e foi coutada por D. Afonso Henriques à Sé de Braga em 1134. O território da albergaria do Marão compreendia uma boa parte da actual freguesia da Campeã (Balsa, Carlos 2018 – A Via do Marão, Contributos para a Identificação do Traçado do Antigo Caminho do Marão. Oppidum, ano II, no 10. Pp.51).
A toponímia local é rica em nomes relacionados com a via, tais como: Pousada, Estalagem Nova, Vendas de Baixo, Venda de Cima, Viariz e Rua do Caminho Romano que de facto corresponde de facto a esta mesma via do Marão.

Para entender o motivo de discórdia e indignação popular sobre a destruição parcial desta via, teremos de recuar a 2019 quando se torna conhecido o projecto de saneamento para o Vale da Campeã que inicialmente incidia directamente na via romano-medieval, prevendo-se a destruição total do caminho com a abertura de valas para instalação das condutas de saneamento. Dado a importância que esta via representa para a localidade o Presidente da Junta de Freguesia da Campeã, Jorge Maio, iniciou uma série de contactos juntamente com a Câmara Municipal de Vila Real (CMVR), com a Direcção Regional de Cultura do Norte (DRCN) e com a empresa Águas do Norte, para apelar a preservação deste património através da alteração do projecto naquele local, e de modo que a obra fosse executada nos terrenos agrícolas contíguos. O resultado deste apelo permitiu alterar o traçado do projecto de saneamento em 200 m de comprimento, salvaguardando assim o troço da via melhor preservado.

Motivado pela DRCN, a Junta de Freguesia da Campeã em conjunto a associação Arquivo de Memórias, elaboram o Pedido de Classificação do conjunto patrimonial composto pela Calçada romano-medieval, o Memorial românico do século XIII e do Cruzeiro do século XVIII dedicado ao Senhor da Boa Hora, pensando que assim todo este conjunto ficaria protegido.

Recentemente, no dia 5 de Junho de 2020, a Junta de Freguesia da Campeã submete o Pedido de classificação deste conjunto patrimonial à CMVR, este que por sua vez terá remetido para a DRCN, segundo os esclarecimentos prestados à comunicação social (in Diário de Trás-os-Montes do dia 7 de Agosto).

Apesar do envolvimento para a salvaguarda deste património de todas as partes interessadas e integrantes neste projecto de obra, não houve qualquer intenção de alterar totalmente o projecto (apenas mais uns meros 15 m de distância) de modo a salvaguardar o troço melhor preservado da via, tendo prosseguido a obra no dia 17 de Julho com a instalação de caixas de saneamento em ambos os lados da via, e a realização no dia 3 de Agosto da vala de ligação entre estas duas caixas que implicou a remoção das lajes e a escavação em profundidade do solo.

Claro que ficam dúvidas no ar e que nenhuma entidade envolvida foi capaz de responder publicamente até ao momento. Terá sido entregue o Pedido de Classificação Patrimonial pela CMVR à DRCN? Se foi aberto o procedimento de classificação então porque não foi cumprido com o disposto no art.º 42, alínea 1 da Lei 107/2001 de 8 de Setembro na qual determina a suspensão de movimento de terras, o disposto no art.º 43, alínea 1 que define um zona geral de protecção de 50 m, contados a partir dos seus limites externos, e a alínea 4 que prevê que as zonas de protecção são servidões administrativas nas quais não podem ser concedidas pelo município, nem por outra entidade, licenças para obras de construção e para quaisquer trabalhos que alterem a topografia do terreno, sem prévio parecer favorável da administração do património cultural competente.

Não se compreende a falta de um estudo de impacto ambiental, ou até de um Plano Director Municipal fidedigno para a identificação do potencial patrimonial existente no corredor de obra e garantir a preservação deste, e de outros patrimónios e áreas arqueológicas existentes no concelho, e que ajudasse também a entender que um “caminho agrícola” poderá não ser
apenas um caminho público mas sim uma antiga via de comunicação, que neste caso em específico detém de importância para a história local e da região.

Este caso é resultado da inexistência de políticas municipais de protecção e salvaguarda do património cultural, demonstrado pelo desinteresse por parte da CMVR em zelar por mais um sítio de interesse patrimonial do seu concelho e pela inércia por parte da tutela em cumprir com as suas competências administrativa uma vez que visitou o local de obra e este conjunto patrimonial antes (em Agosto de 2019) e depois da obra. Todo este processo foi simplificado a um pedido de autorização de trabalhos arqueológicos para o acompanhamento da obra, ignorando o Pedido de Classificação Patrimonial que CMVR afirma ter entregado, e que foi
elaborado e entregue pela Junta de Freguesia para a salvaguarda do seu património.

Segundo a CMVR, em comunicado nas redes sociais no dia 7 de Agosto, afirma que este caminho está identificado como sendo de “eventual interesse arqueológico e histórico”, desconhecendo, talvez, que na Base de Dados Endovélico (Direcção Geral do Património Cultural) existe um CNS n.o 30521 classificado como uma via romana que corresponde a esta
via e que dista cerca de 2 km para Este da área de afectação, ignorando ou desconhecendo ainda que também consta na Carta Arqueológica de Vila Real (Ervedosa, Carlos 1991), entre inúmeras publicações de vários investigadores que estudam as vias romanas e medievais de Portugal.

O que fica de opinião pública é que não houve qualquer intervenção científica para minimizar os impactos da obra, uma vez que não foi possível alterar por completo o projecto (por um afastamento de 15 m para ocidente) nem tão pouco aproveitar esta oportunidade para se investigar e conhecer um pouco melhor esta via romano-medieval. A satisfação das entidades
envolvidas, exceptuando a Junta de Freguesia da Campeã, fica-se pela reposição das lajes da calçada “na posição original” e com a escavação mecânica integral de todos os sedimentos, garantindo que teve acompanhamento arqueológico.

Como podemos aceitar este caso quando a vontade de preservação de um património com memória viva é negligenciado por quem tem o dever de zelar, salvaguardar e proteger?


Luís Filipe Pereira –  Arqueólogo. Experiência profissional no domínio da investigação arqueológica. Desenvolve investigação sobre arqueologia e património cultural. Presidente da Campanoo – Associação Cultural, Ambiental e Patrimonial.