
OPINIÃO
1 de Março de 2021

“Mais uma vez em Vila Real um património cultural é desvalorizado e ridicularizado quando se questiona publicamente e com frontalidade se existem medidas de salvaguarda do património da cidade. “
Quando uma autarquia promove obras de “reabilitação” ou de “requalificação” no centro histórico de uma cidade deve ter consciência do potencial patrimonial existente, um pleno conhecimento sobre a história local e medidas de salvaguarda patrimonial dos vestígios arqueológicos que possam vir a ser descobertos. Actuar num centro histórico por mais simples que possa parecer pode ser uma tarefa árdua, principalmente se houver vontade em respeitar o património monumental, cultural e ambiental. Uma simples “reabilitação” de uma rua pode pôr a descoberto ou até evidenciar vestígios arqueológicos que não se conheciam, ou então que até se conhecem mas que entretanto nunca foram devidamente valorizados, tal como o caso da Arte Rupestre existente na Rua Marechal Teixeira Rebelo em Vila Real.
Quando não se conhece é normal não se atribuir o devido valor, mas quando um património é conhecido, isso é grave e quando o mal acontece é ser negligente. Tal espanto é “descobrir” que em pleno centro histórico de Vila Real, quase por baixo da Sé – Igreja de S. Domingos (Monumento Nacional) existe um penedo com arte rupestre, ou um santuário para ser mais exuberante e assim poder evocar o investigador que deu a conhecer este património, o padre João Parente, e que até está localizado em plena via medieval da velha Villa Real de Panóias. Trata-se de um testemunho dos nossos antepassados que permaneceu despercebido bem à vista de todos, até ao momento que salta para a ribalta porque é foco de atenção devido a uma obra que pôs, e põem em causa a integridade desse património. Mais uma vez em Vila Real um património cultural é desvalorizado e ridicularizado quando se questiona publicamente e com frontalidade se existem medidas de salvaguarda do património da cidade. Segundo Adriano Sousa, vereador da mobilidade e urbanismo da Câmara Municipal de Vila Real (CMVR) e o responsável pelo projecto, “aquele espaço” (a arte rupestre) está identificado no projecto de reabilitação no âmbito do PEDU (Plano Estratégico de Desenvolvimento Urbano), o que torna este caso ainda mais grave.
Durante o desenvolvimento da obra de reabilitação na Rua Marechal Teixeira Rebelo o afloramento rochoso que contém arte rupestre que é caracterizada por covinhas, estribos, “serpentiformes” e eventuais outros motivos, sofreu alguns danos pois observam-se marcas recentes de dentes de uma máquina, o solo junto ao afloramento rochoso escavado, o penedo partido e material de construção civil depositado em cima da rocha. O tratamento que é dado a um património, que afinal era conhecido, motivou o alerta dado no dia 08 de Fevereiro de 2021 à CMVR, à Direcção Regional de Cultural do Norte e à Direcção Geral do Património Cultural, digamos, um segundo alerta pois muito antes do início desta obra as entidades foram alertadas sobre esta existência. Quando recentemente visitei o local e verifiquei que foram causados danos no afloramento rochoso, nem uma rede sinalizadora existia, sendo algo que apareceu no local somente após o conhecimento público e a divulgação nos jornais, contradizendo o que o senhor vereador Adriano Sousa da CMVR viria a posteriormente afirmar nos meios de comunicação social local, dizendo que a autarquia defende o património local e que “há algumas referências a aspectos rupestres naquela zona, sem que, no entanto, nada esteja inventariado no património arqueológico”. Estranha contradição! Pois não é de espantar que ao consultar a documentação oficial sobre o património arqueológico local que a CMVR disponibilizou publicamente, perceber que este afloramento rochoso que contém arte rupestre não consta em nenhum inventário patrimonial, pelo menos de conhecimento público, o que levanta algumas questões: haverá uma escolha consciente ou uma selecção do que querem apenas apresentar como património histórico-arqueológico da cidade? Aparentemente há uma escolha e selecção do que entendem que deve constar num descritor patrimonial, pois a CMVR desde o início do projecto PEDU, e de outros projectos que decorrem actualmente, tem vindo a seleccionar o que interessa salvaguardar, pois tudo o resto é inconveniente e logo desvalorizado e ridicularizado localmente, fugindo assim à responsabilidade constitucional e legal de zelar e defender o património local. As respostas da autarquia ficam-se sempre pela intenção, pois a culpa não é deles mas sim de quem danificou, uma vez que fizeram “questão de que o projecto de reabilitação não interferisse minimamente com aquele afloramento rochoso” como “também deram instruções ao empreiteiro” para terem cuidado, no entanto nem o mínimo conseguiram garantir com uma devida sinalização deste património.
A questão não se trata somente de proteger mas no mínimo salvaguardar através do registo, enquanto o ideal seria através de uma investigação científica, pois é uma área com interesse arqueológico e que era de conhecimento das entidades públicas, algo que no mínimo exigia-se um acompanhamento arqueológico desta intervenção, mas tal não deve ter acontecido, contrariamente ao que é afirmado pela CMVR, pois se nunca foi devidamente sinalizado, quase por certo que também não teve alguém por perto a acompanhar esses trabalhos uma vez que também não há exigência por parte da autarquia em salvaguardar verdadeiramente o património da cidade, pois vale mais desvalorizar do que prevenir ou actuar. Se na bibliografia arqueológica local menciona a existência desta arte rupestre, e inclusive este património foi tema de apresentação no IV Congresso Internacional – Santuários, cultura, arte romarias, peregrinações, paisagens, pessoas que decorreu em Junho do ano de 2017 com o título de Santuário Rupestre no coração de Vila Real da autoria da arqueóloga Rita Melo, fica ainda uma outra pergunta: qual é a credibilidade dos estudos que a autarquia realizou para identificar o património arqueológico da cidade e do concelho?
Tomando conhecimento sobre este acontecimento, a associação International History Students & Historians Group (IHSHG) demonstrou também o seu desagrado e prontamente intercedeu em prol da defesa deste património vilarealense, bem como motivou recentemente alguns partidos políticos a questionar a autarquia sobre o que aconteceu e pedir seja compatível a modernização da cidade com a preservação do património local.
No fim desta história a CMVR fica ainda satisfeita por divulgar que vão valorizar duas fontes, uma delas medieval, que denominaram como achados arqueológicos, quando na verdade correspondem a arquitectura civil hidráulica, talvez como alusão a um símbolo cristalino da defesa do património da cidade ao ter realizado um acto de caridade quando destaparam as duas fontes que existem na Rua Marechal Teixeira Rebelo, visto que o resto nada importa!
Luís Filipe Pereira – Arqueólogo. Experiência profissional no domínio da investigação arqueológica. Desenvolve investigação sobre arqueologia e património cultural. Presidente da Campanoo – Associação Cultural, Ambiental e Patrimonial.